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sexta-feira, 28 de agosto de 2009

[ Cartão ]


Um cartão. Só preciso disso: de um cartão. Dê-me um Cartão. Umzinho, pequenino ou não, mas apenas um. Um que me traga coisas boas, que expulse as más, que me traga risos e felicidade. Um, só um. Um que eu entenda o que quis dizer quem me deu – que, com certeza, não me deu por apenas dar – e me foi dado uma única vez. Basta que seja retangular – ou mesmo que tenha todos os lados iguais – mas não me negue o prazer e o desgosto de ganhar um cartão. De condolências ou felicitações, algumas poucas linhas que sejam profundas. Pode ser nu, sem nada escrito de um lado do outro, com endereçamento apenas no envelope. Com imagens, paisagens ou personagens, um por do sol a Beira Mar ou, quem sabe, mais uma piada conhecida e sempre genial do Snoppy ou Garfild. Um cartão: é isso que vos peço, diante aqui de vos, sempre tão serelepe sentado nessa cadeira azul mais alta, senhor. Um cartão. Cartão vermelho.

Cartão de sangue brasileiro.

Lucas Macedo Lopes

28 de agosto de 2009

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sexta-feira, 7 de agosto de 2009

[ Érico Veríssimo – Prefácio de Solo de Clarineta ]


O meu amigo mais íntimo é o sujeito que vejo todas as manhãs no espelho do quarto de banho, à hora onírica e displicente em que passo pelo rosto o aparelho de barbear. Estabelecemos diálogos mudos, em uma linguagem misteriosa feita de imagens, ecos de vozes – alheias ou nossas, antigas ou recentes –, relâmpagos súbitos que iluminam faces e fatos remotos ou próximos, nos corredores do passado e às vezes, inexplicavelmente, do futuro —; enfim, uma conversa que, quando analisamos os sonhos da noite anterior, parece processar-se fora do tempo e do espaço. Surpreendo-me quase sempre em perfeito acordo com o que o Outro diz e pensa. Sinto, no entanto, um pálido e acanhado desconforto por saber que existe no mundo alguém que conhece tão bem os meus segredos e fraquezas… uns olhos assim tão familiarizados com a minha nudez de corpo e espírito. Talvez seja por isso que com certa freqüência entramos em conflito.

Mas a ridícula e bela verdade é que no fundo, bem feitas as contas, nós nos queremos um grande bem. Estamos habituados um ao outro. Envelhecemos juntos. A face do Outro é o meu calendário implacável. "Os cabelos te fogem, homem" murmuro-lhe às vezes "Tuas carnes se tornam flácidas. Vejo a escrita do tempo no pergaminho do teu rosto". "E como imaginas que estás?" replica o meu reflexo. Acabamos consolando-nos mutuamente com a idéia de que conservamos a mocidade de espírito. Mas até onde isso será verdade? Encolhemos os ombros e passamos a outras considerações e devaneios, enquanto o barbeador elétrico zumbe, e o incansável calígrafo invisível continua no seu sutil trabalho de amanuense da Morte.

No Homem do Espelho reconheço os olhos escuros e melancólicos de minha mãe. Essa cabeçorra, quase desproporcional ao resto do corpo, herdei-a de meu pai. Quanto à pele morena, talvez me tenha vindo de algum remoto antepassado índio ou mouro. As sobrancelhas negras e espessas — que passaram a vida no vão esforço de dar a essa cara um ar façanhudo, decerto com o propósito de atenuar a mansuetude quase humilde dos olhos foram suavizadas pela prata com que o tempo as retocou.

Eu gostaria de simplificar o problema de meu "temperamento" apresentando-me como a manifestação de uma dicotomia, segundo a qual tendências que herdei de minha mãe sobriedade, senso de responsabilidade, devoção ao trabalho, à ordem e à normalidade podem ser comparadas com os muros de uma cidadela sitiada e repetidamente atacada por insidiosos e alegres bandos de guerrilheiros constituídos por certos componentes do caráter de meu pai: sensualidade, auto-indulgência, inclinação para o ócio e para uma espécie de hedonismo irresponsável.

"Mas a coisa não é tão simples e nítida assim" observa o Outro.

"Eu sei, eu sei" — respondo em pensamentos — "mas vamos adiante, companheiro. É pelos sendeiros do erro e da dúvida que havemos de chegar um dia ao reino da verdade."

O Fantasma foca em mim os seus olhos secretamente céticos e murmura: "Será que esse reino existe mesmo fora da mitologia?"

Ambos encolhemos os ombros. Nem eu sei, nem ele sabe, e nem ninguém mais.


P.S.: Infelizmente - para o blog - estou com pouco tempo disponível para devanear por aqui. Mas como são poucos os que chegam até aqui para ler algo, e a demanda para que eu escreva algo é - a meu ver - praticamente nula. Acredito que não ficaram desapontados oa que leram esse texto do Érico Veríssimo. Até a próxima,


Lucas Macedo Lopes

7 de agosto de 2009


~/Ł/~

O importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós - Jean-Paul Sartre