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sábado, 28 de março de 2009

[ Faz de Conta que Passou ]


Abri meus olhos. O teto parecia mais escuro com o tempo nublado lá fora. Os braços dela circundavam meu tórax e o seu nariz esquentava o meu pescoço. Nada mal, a fronha no chão, nossas roupas espalhadas pela casa, um lençol ainda úmido pela nossa comemoração. Um ano. Não que nós já não tivéssemos feitos antes, mas nunca fomos tão livres para fazê-lo assim ao ponto de deixar o meu apartamento igual a um campo de guerra. Contemplei o teto mais uns instantes, passando minha mão sobre o cabelo dela enquanto a minha outra tentava diminuir a minha dor de cabeça. Beijei-lhe a testa. Ela sorriu um sorriso de quem sonha acordada, e fiquei sentado à beira da cama.

Nem parece que tudo o que fizemos era realmente uma comemoração. Minhas pernas se relutavam em caminhar na direção do chuveiro. Resolvi ligar a banheira e esperar a coragem chegar. Meus olhos fundos no espelho não eram de alguém que estava em sã de consciência. Estava quebrado não só por termos escorregado quando estávamos sobre a mesa, mas durante a semana inteira passei adiantando a papelada no escritório para ter uma noite para nós.

Era o gelo da água tomando de conta da minha pele enquanto o calor da noite ainda transpirava na minha pele. Peguei o pouco do vinho que restara e fui terminando aos poucos, saboreando o que era possível de uma bebida a temperatura ambiente. Da porta, a via toda desleixada como nunca vira antes. Um ano e, mesmo assim, ela continua uma estranha para mim.

Cada golada era como se fosse um gato arranhando a minha garganta. Mas o pior não era o vinho: era saber que todo o tempo que eu passei ao seu lado não deu para saber nem um décimo de quem seria. O que foi aquilo no jantar anterior. O álcool liberou veredas de nossa própria existência que eu nunca sonharia que existiam.

Já tive outros pormenores. Costumava projetar nos outros o que eu achava que eram e acabava me enganando (e sendo enganado) quase sempre. Depois que se aprende a lidar com isso, não tem como cair no mesmo conto duas vezes. Mesmo passando um ano inteiro com ela não me permitiu saber nem ao menos qual é a sua essência. Olha para ela já tive alegrias e tristezas, mas esta garrafa em minha mão praticamente não fala e só me traz amarguras.

Enxuguei-me. Pus a toalha para estender e fui colocar uma roupa leve para ver o que as nuvens não deixavam o sol ver. O mundo acordava novamente e eu a olhar cada um levando a sua vida maquinalmente, desejando para que a festa da vida seja eterna e o trabalho mínimo. Não, mesmo assim eu não conseguia relaxar por quem dormia na minha cama. Depois de todo esse tempo, será ela quem vai me agüentar por um tempo relativamente curto – até a melhor idade, talvez?

Comi alguma coisa para ocupar meu pensamento com outra coisa, mas há algo faltando. Será aquela vontade de se aventurar a caça por esses becos da cidade? Novas pessoas ou novos amores? Já é um trabalho dos grandes ter que conquistar a dorminhoca todo o tempo. Mas não tenho que provar mesmo para ela, é dogmático por si só.

Peguei a garrafa d’água, abri a porta com cuidado para que o barulho não a perturbasse, mas não deu outra.

- Amor, cê está indo pra onde?

- Caminhar um pouquinho só.

- Hum – disse se espreguiçando – não se esqueça dos pães.

- Tudo bem, só vai ter que esperar mais que o usual.

Não respondeu. O sono foi maior. Fechei a porta e girei a chave umas duas vezes.

Pães.


Lucas Macedo Lopes
28 de março de 2009

~/Ł/~

sábado, 21 de março de 2009

[ Amorístico ]



A arte imita a vida,
A vida imita a arte
Quem começou
Que(m) sabe (?).

Se arte é a vida,
Se viver é o amar,
E humor é a arte,
O Amar é o humor.

Não é humorístico dizer
Que a graça aparece sempre;
Quem não perde nunca a piada,
Perde mais do que uma amizade.

Não vamos chorar sempre
Nem se enxugar salgadamente,
Deixemos os palhaços exilados
A praticar a arte de gracejar.

Para nós, apenas o fundamental:
Melhor do que arrancar risos,
Prefiro conquistar os suspiros
Mesmo que as flores sejam
[de carne e osso.


Lucas Macedo Lopes
18 de março de 2009

~/Ł/~

domingo, 8 de março de 2009

[ Tanto tempo, nesses tempos ]


- Falou, Joy.

- Até, rapaz.

Olhei para a tempestade que fazia fora da varanda da casa do meu amigo. Não era nada de mais. Meu sobretudo só não cobria a minha cabeça. Ajeitei a gola para que molhasse menos o meu pescoço e segui em frente, com a chuva a encharcar os meus óculos.

Cervejas aos sábados não faz mal a ninguém. Dois amigos de muito tempo, com uma rotina semanal de vasculhar o fundo de um baú de lembranças tão revirado quanto as nossas próprias vidas, sem nunca achar uma novidade no passado ou uma certeza para o futuro. O único saber meu era o álcool, que a muito lutava com o meu sangue para saber quem circulava primeiro no meu corpo. Cada poça de água que eu tentava me livrar, um banho certeiro de um motorista qualquer.

Sem o luar numa noite como esta é igual ao bairro do meu amigo sem as eventuais prostitutas. Algumas bonitas – não minto – mas não era motivo para me servir delas todas as vezes que atravesso essas esquinas. Há muito deixei de julgar suas decisões, assim como do resto dos estranhos que conheço. Não se dá para saber, ao certo, que caminhos as levaram para aqueles becos deploráveis. Mas o que me leva para todas as quintas por esses becos é a certeza de que o tempo passa e os nossos companheiros se resumem a alguns poucos chopes.

Meus dedos brincando com as chaves nos meus bolsos bem molhados, e todos aqueles desejos dos outros passando pela minha cabeça. “Quero logo o final-de-semana!” ou “E essas férias que não chegam logo...”. Para que aproveitar apenas dois, dos sete dias de uma semana que se tornam cada vez mais curtas? Não, não, prefiro que o sábado ainda demore mais para chegar enquanto eu estou preso no meio de uma terça-feira. Até aquela chefa insuportável está virando uma pessoa aturável para mim – meus colegas da firma dizem que eu estou ficando no louco, no final das contas.

Dias curtos para quem trabalha, noites longas para quem espera sob um ponto de ônibus. As ruas desertas não me animaram com o rio que corria por entre elas. Prefiro continuar o meu percurso a pé. Caminhando um pouco mais, vi uma padaria aberta. Um café viria a calhar.

- Bom dia, senhor, o que deseja?

- Hum... um café, tem como?

- Bem, a menina do café não chegou ainda, mas vou lá dentro ver o que eu tenho. – respondeu graciosamente a atendente.

Do lado de fora, a pilha de jornais bateu com força na porta do estabelecimento. Cinco da manhã e nem sinal do sol aparecer. Na manchete, letras garrafais dizendo “Feliz dia das Mulheres!”, um caderno no jornal especialmente feito para aquele domingo, oito de março, e eu a ler a comemoração internacional.

Sentei-me.

Olhei para a xícara posta sobre o balcão e fui me esquentando um pouco a cada gole, enquanto a atendente recolhia os jornais e esperava os outros funcionários chegarem.

- Isso que é disposição!

Surpreso, olhei para a mão posta sobre o meu obro, e uma amiga de tempos sorria para mim. Foi interessante ver o que o tempo tenta fazer com alguém. Apesar de ter eventuais marcas de sua vivência, ele continuava linda como era nos tempos dos estudos.

- Não se preocupe, nos falaremos ainda – disse ao me despedir dela e vê-la sumir no meio da chuva que caia.

Essa vida com tantos compromissos inúteis e o que realmente importa vem todo domingo comprar pães aqui. Não quero que as férias cheguem logo, ou que as semanas se resumam a dois dias. Nem pensar em desperdiçar uma noite sem luar ou manhã sem sol. Essa vida moderna que não nos deixa aproveitar as simplicidades que a vida tem a oferecer. E não é raro encontrar alguém que reclame o tempo passa rápido.

- Tanto tempo, nesses tempos, e nem vemos.

Sorri.



Lucas Macedo Lopes

8 de março de 2009

~/Ł/~

O importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós - Jean-Paul Sartre